Em órbita

Íamos viajar de férias e precisávamos de novas malas. Morávamos próximo a um grande shopping onde havia boas opções. Fomos a pé. De mãos dadas, curtíamos o tempo folgado da manhã sem compromissos. Em meio ao furdunço das ruas, conversávamos, dávamos risadas.
No que passamos pela porta do shopping sentimos o contraste do ambiente asséptico com a cidade lá fora. É como entrar numa bolha.
Não tivemos dificuldades em achar as malas. Já sabíamos mais ou menos o que queríamos e logo seguíamos pelos corredores, cada um puxando a sua. Perambulamos um pouco olhando vitrines, parávamos aqui e ali, mas seguíamos sempre. A ideia era não demorar, embora no rumo de saída sempre surgisse um atrativo qualquer...
Então, um vestido chamou a atenção e entramos numa loja. Depois dessa, outras vitrines, outras peças, calçados, bolsas, nenhuma compra e foi-se aí um bom tempo. O bastante para que já estivéssemos abduzidos pela grande redoma.
Ao perguntar o preço de umas sandálias, cheguei a estranhar o sotaque carioca de um vendedor. A abstração da cidade era tal que tanto fazia estar no Rio, em São Paulo, ou no Recife, quem sabe, Porto Alegre. Seria Buenos Aires?
Precisava sentar. Ela experimentava perfumes. Vi umas poltronas numa área atapetada e ali me acomodei. Quando relaxava, dei por falta da mala. Esqueci em alguma loja? Mas em qual?  
Na perfumaria ela decidia entre uma uma ou outra fragrância. Reparei que também não estava com sua mala. Não tive tempo de falar porque, ao me perceber, estendeu o braço em que passara a amostra e perguntou sorrindo:
"Você gosta?"
Cheirei ligeiro e disse
"É ótimo, mas..."
"E este?"
Disse estendendo o outro braço.
"Também é muito bom... mas, as malas... onde estão as malas?"
Arrancados da espécie de transe que nos capturara, saímos batidos pelos corredores procurando refazer o roteiro percorrido. Passos apressados atropelavam o olhar descansado com que até então flanávamos por ali. A radical mudança de humor alterava também a percepção do ambiente. Nada mais nos impressionava, ou seduzia. Estávamos constrangidos com a própria desatenção. Blindados, simplesmente passávamos.
Entramos em muitas lojas, subimos, descemos e nada das malas. Mas, ao passar em frente a uma livraria, lembrei-me que andava à busca de guias sobre alguns países. Olhamos um para o outro e entramos.
A pausa na correria nos fez bem. Compramos livros sobre Portugal, Itália, Holanda, uma antologia de Drummond e uma seleção de poesias eróticas, traduzidas.
Na fila do caixa procurávamos lembrar de outras lojas onde  entramos. Embora não falássemos alto, a situação da fila possibilitou que a mulher, logo atrás, nos escutasse.
"Desculpem, mas ouvi sem querer a conversa e sei onde vocês esqueceram as malas".
Era a gerente da primeira loja onde paramos. A do vestido bonito.
Cláudia ficou linda nele!
Pusemos tudo numa das malas. Vestido, livros, e, de quebra, um par de tênis que também me dei de presente.

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2016)

Direitos Reservados © 2016 Cristiano Ottoni de Menezes

Concerto

Um poema 
que me dissesse 
com a força do trompete
Um poema que ecoasse
como o som do sax
Que fosse o meu solo
meu sol maior 
a brilhar nas consoantes
de todas as notas
nas dissonantes
de cada sílaba
nas vogais 
de cada acorde
nos versos das partituras
no som de iluminuras
Um poema
que fosse a minha Nona
minha sintonia cósmica
que se regesse
com varinha mágica
e fizesse dançar as estrelas
na apoteose orgástica
do poema que me dissesse.  

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)

Direitos Reservados © 2016 Cristiano Ottoni de Menezes

Que las hay, las hay

O pau tá comendo. Em todo canto, a qualquer pretexto a discussão começa. Um inocente chope num bar vira uma guerra, o jantar com o casal amigo, uma tragédia. Agora então que the face book is on the table, piorou. Briga-se on-line all the time. Em permanente embate, sofremos com a deterioração e o rompimento de velhas amizades, cavamos buracos, queimamos pontes, confinamo-nos em ilhas, vivemos, enfim, num arquipélago de pesadelos.
Na noite passada mesmo, tive um. Fui dormir chateado por ter deletado um amigo de velha data. Já fazia tempo que ele postava coisas que me faziam respirar fundo, contar até 10 e, ainda bem, não responder. E assim nossa amizade perdurava. Na verdade, seguia catando cavaco, à beira de abismos. 
Até que ontem à noite, dando uma espiada no face, dei de cara com comentário dele que foi a gota d’água. Para não me desgastar dizendo tudo o que achava daquilo, excluí no ato. Simples assim.
Pra quê... Fiquei horas sem conseguir fazer nada. Pegava o livro que estou lendo e era como se estivesse impresso em japonês arcaico. Não entendia uma sílaba sequer, quanto mais qualquer frase... 
Liguei a TV mas logo me afastei. No jantar, não consegui conversar direito, nem comer. Quando percebi que poderia criar um mal-estar, fui para o quarto e me recolhi.
Apaguei a luz, mas sem sono rolava na cama. Não pensava em outra coisa:
“O meu velho camarada.... Deletei o meu amigo. ”
Imaginava-o do lado de lá, em algum lugar muito distante, sem conexão comigo. O fim de papo foi retumbante como esse silêncio que agora me tortura. Imagino que a ele também. 
Putz.... e eu gostava do cara... Ah, mas fazer o quê? A todo momento parecia que subia numa tribuna. Digitava longos textos com um monte de palavras em caixa alta. Não dialogava, mas destilava certezas, batia martelos... estava muito chato.
O som da televisão na sala foi ficando distante, distante.
Devo ter dormido logo. De madrugada levantei-me para ir ao banheiro. Mesmo zonzo reparei que não estava mais só na cama. Na volta para o quarto, fui até a sala apagar uma luminária esquecida acesa.
Voltei para a cama, deitei e quando me virei de lado buscando me  aconchegar, uma louca, desgrenhada, de um pulo pôs-se em pé e jogando os cabelos para frente e para trás gritava histérica: 
“Eu quero a cobra! Onde está a cobra?
Tomado de espanto e terror olhava para os lados à procura de minha mulher e ao mesmo tempo gritava:
“O que é isso! Quem é você sua doida?! Saia daqui! “
E a louca com a blusa aberta, avançava, recuava e tornava a avançar em minha direção. Rodava um chicote sobre a cabeça e gritava sem parar:
“Acabou! Não vou deixar mais essa cobra dominar a minha mente, minha alma! Cadê a cobra?”
Acordei com o abraço de Claudia que ria e tentava me acalmar.
“Calma, calma. Sou eu.... Que sonho foi esse? ”
Entre dormindo e acordado, falei:
“Poxa... como é que essa doida entrou aqui? E onde você ...”
Aliviado entendi tudo. Abraçados, voltamos a dormir. Achei melhor não comentar mais nada...

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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Qual é a do peixe...

Caminhava pela areia junto ao mar. Céu azul, sol de meio dia. De repente surgem duas gaivotas em voos sinuosos sobre a multidão que se bronzeava pouco mais afastada das ondas. Continuei a andar com olhar fixo na cena. E então percebi a disputa pelo peixe que uma delas trazia no bico. Em meio às investidas, gingas de escape, o peixe caiu. Acompanhei sua trajetória reta e veloz. Vi quando se estatelou na perna de uma banhista deitada de bruços. Apertei o passo em sua direção e cheguei a ouvir o grito de susto da moça que num salto pôs-se em pé. Ainda sem entender o que acontecera, olhava para aquele peixe como que se não acreditasse no que via. 
O que é isto? Quem fez isto? Era o que parecia perguntar, atônita, irritada. Fosse uma bola não deixaria de ser desagradável, ou pelo menos algo mais... factível. Mas um peixe, distante da água, e com aquela força?    
Um menino bem pequeno veio correndo dizer que caíra de um avião.... Seu pai e outros se aproximaram, até que a moça pegou o peixe pela cauda. Olhava para ele, para cima, para os lados, à busca de uma explicação. Então tive a oportunidade de lhe relatar o que vi. Mesmo que perplexa, aos poucos conformava-se. Largou o peixe e apontou-me um vermelhão na perna atingida. Era como se tivesse levado uma chibatada. 
Na areia o peixe já parecia virado na farinha. Peguei-o, vi que media uns 40 cm e tinha na barriga um pequeno sangramento pelo corte do bico da gaivota. Pelo peso e a marca na perna da moça, pude imaginar a pancada.  Mostrei-o ao menino e mais uma vez expliquei o que se passou. Não caiu de um avião, mas de uma gaivota como as que nos sobrevoavam. Convidei-o a ir até a beira d’água para devolvê-lo ao mar. Quem sabe, sobreviveria.... Não precisei falar outra vez. Entreguei o peixe ao pequeno que sentiu-lhe o peso e o jogou n’água. Não foi longe e logo voltou aos nossos pés. Segurei-o novamente e, conforme os apelos do menino, atirei-o “lá no fundo”. Despedi-me do garoto, de seu pai, fiz um aceno para a moça “premiada” e retomei a caminhada.
Como de costume fui até o Forte Copacabana, onde faço a meia volta. Ao passar novamente pelo “ponto do peixe”, vi-o inerte, na água rasa, no leva e traz das ondas, já desprezado pelas gaivotas. Levantei a cabeça e me deparei com a moça. Diminuí a passada e perguntei se estava bem. Ela respondeu que sim, mas ainda impressionada comentou: 
“Poxa... que azar o meu!” 
Sem parar respondi:
“O que isso! Azar tiveram o peixe e a gaivota. Com tanta inhaca no ar, até que você teve sorte...

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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No coração do Brasil

Andava desde que o dia clareou. Deveria ser algo em torno das dez horas. A mochila, de nylon, estrutura de alumínio, com poucas roupas e o meu I-Ching, não pesava tanto. E então, uma encruzilhada. Quilômetros atrás não faltavam opções, mas naquela confluência era uma ou outra direção. Olhei em volta e não percebia nada que motivasse qualquer escolha. Nenhuma montanha, casas ou paisagens interessantes. Só mato fechado. Se estivesse com alguém, faria ao menos um par ou ímpar, mas, sozinho, naquele fim de mundo, tive que escolher e assim fiz.
Fui pela esquerda. A terra era seca e meus passos levantavam poeira. A bota, originalmente verde, tinha, àquela altura, uma coloração entre o cinza e o marrom. Fisicamente estava bem, mas mentalmente cansado. Quatro meses de estrada, caronas de caminhão, longas caminhadas, noites no saco de dormir em quiosques de praças, varandas de casas, ou terrenos afastados. Já era hora de voltar para casa.
Continuava a andar. A paisagem era a mesma. Mato dos dois lados e a estrada de terra por onde avançava, só não sabia para onde. Já fim de tarde, a temperatura e a luz começavam a cair. Estava em plena Amazônia e quando escurecesse ficaria numa situação muito perigosa. Imaginava, no mínimo, onças à espreita, olhos brilhando na escuridão. Impossível voltar. Andara o dia inteiro. O lugar era absolutamente ermo. Ao longo do dia os únicos seres vivos que vi foram pássaros e algumas aves de maior porte. Começava a ficar tenso. Imaginava-me tendo que esticar o saco de dormir à beira da estrada, junto ao mato que a margeava. Continuava a caminhar, até que ainda ao longe, vi um caminhão parado. Já menos distante percebi um homem agachado que trocava um pneu. Senti a alegria dos náufragos. Segui nos meus passos. O sujeito continuava na função e agia como se não acontecesse nada além do que fazia. A uns vinte metros de distância acenei e, projetando a voz, disse: 
“Boa!”
Não tive resposta e o homem sequer me olhou. Senti perigo e parei. Com movimentos lentos, tirei a mochila das costas, pousei-a na terra e me agachei. Dali podia ouvir os ruídos que eram produzidos no manejo das ferramentas. Senti que era observado de soslaio. Depois de alguns minutos, tentei novamente um contato:
“Sou estudante, moro no Rio de Janeiro... Estou voltando pra casa... O senhor pode me dar uma carona?”
Nada de resposta. Apreensivo, não sabia como conquistar a confiança do motorista que com a chave de roda já dava os últimos apertos nos parafusos do pneu trocado. A noite chegaria logo. Aquele caminhão era a minha única chance de não ficar naquela estrada que cortava a selva. 
Sempre agachado no mesmo lugar acompanhei atentamente a maneira como guardou o macaco e a chave de roda na caixa de ferramentas. Foi então que, enquanto limpava as mãos com uma flanela, olhou-me enfim e pôs-se a examinar detalhadamente o estranho que surgira do nada, naquele lugar desabitado, onde ninguém passava a pé.
Então falei mais uma vez:
“Meu amigo... me dê uma carona por favor...  Sou um estudante em férias....  Viajei um bocado, conhecendo a região aqui, mas agora preciso voltar pra casa... ” 
Sem falar uma palavra, abriu a porta do caminhão, sentou-se ao volante. Fiquei onde estava. Com o coração na boca, ouvi a porta bater. Mais um pouco e o ronco do motor preenchia o espaço com uma série de curtas aceleradas. Senti o tranco quando engatou a marcha. Deu a ré e passou por mim. Com o movimento da cabeça, acompanhei-o como se estivesse filmando. Parou a uns cinco metros de onde eu estava. Com os olhos arregalados, a boca semiaberta, vi-o soberano em sua boleia. Deu mais algumas aceleradas, engatou a primeira e lentamente passou novamente por mim. 
Angustiado vi-o afastar-se, mas quando o motor já pedia a segunda marcha, recebi como música nos ouvidos o som do ar comprimido de duas ou três pisadas no freio. Num salto peguei a mochila e corri em direção à sua porta:
“Vai me levar amigo? ” 
Perguntei com os olhos transbordando alívio e alegria. E desta vez ouvi uma resposta:
“Levo sim, mas na boleia não. Só lá atrás”.
Rapidamente subi na carroceria. Vazia, era toda minha. A noite desceu. Estiquei o saco de dormir, apoiei a cabeça na mochila e me deitei sob o céu mais estrelado que já vi. 

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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Minhas calças vermelhas...

E então o transatlântico seguiu viagem, desta vez, pelo ar. Assustado olhava para o território que sobrevoávamos e balbuciava: 
“Mas... como ele voa? Não vamos cair? ”
“Não... é assim mesmo, fique tranquilo”, disse alguém.
O medo passou, mas não o estranhamento, a admiração.
Pousamos à noite na parte mais alta de um pequeno lugarejo. Embora cuidadosa, a descida causou grande alvoroço na população local. Mas, da mesma forma como se passou comigo, o inusitado foi logo absorvido. Um navio “ancorado” no alto do morro, onde pousou, logo não causava maiores espantos. Estava ali, e pronto. 
Já os passageiros, os tripulantes, ah, éramos vistos como extraterrestres, algo assim. Ao circular pelas ruelas do lugar percebia olhares de soslaio, comentários disfarçados nas calçadas, janelas ou portas de bares. 
Atravessei a cidadezinha e cheguei a uma praia sem areia. Havia muitos banhistas e todos aglomerados na estreita faixa de pedra onde as ondas batiam com relativa força. Fachos de luz percorriam o lugar, o que possibilitava apenas uma visão intermitente. Pessoas, pedra e ondas surgiam e desapareciam, como se piscassem continuamente. 
Troquei algumas palavras com um jovem bem queimado de sol e sunga preta. Ele me orientou a sentar na pedra e prestar atenção nas ondas gulosas que a lambiam. Os mergulhos tinham que ser rápidos e próximos à costa. Lembro de seu rosto, com olhos puxados, mas expressão ocidental. Tinha algo de rude, mas não deixou de me alertar quanto aos procedimentos adequados de modo a me proteger. E só. Sem muito papo. Tipo, cuide-se e tchau. 
Acordei com a forte impressão da viagem num navio voador. Esbocei um início de narrativa, mas Claudia tinha que sair para um compromisso. Não era o momento de se compartilhar sonhos. Absurdo e mudo, entendi. 
Levantei-me, cruzei a sala e na cozinha dei de cara com a pia cheia de louça do jantar. Comecei então a lavar. Foi a forma que encontrei para me manter em silêncio e prolongar as sensações oníricas. Enquanto enxaguava pratos, copos, talheres, procurava me lembrar das sequências, vislumbrar sentidos, buscar conexões.
Ela assumiu o fogão e logo, acomodados na pequena mesa da cozinha, comíamos a tapioca com café. Nessa brecha, demos uma passagem de olhos nos jornais, suas manchetes, reportagens e trechos de colunas. Não havia tempo para a leitura de artigos, mas a espiada nas últimas do jogo político foi o bastante para a inevitável dose de tensão. Há de tudo na disputa pelos poderes do Estado, essa abstração que rege nossas vidas.
Já à porta do elevador me deu um beijo junto com a recomendação que ficasse atento à chegada do técnico de ar condicionado. 
Voltei ao jornal, mas já não conseguia ler uma linha sequer. Fiquei pensando no bem comum, essa outra abstração.
Me deu vontade de tomar aquele velho navio... 

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


Direitos Reservados © 2016 Cristiano Ottoni de Menezes

Traço na audiência

Apaguei no sofá
Sou fã daquelas almofadas macias
Tantas são que me afundo ali
entregue à tentação de suas plumas 
Desapareço entre almas, fadas
sonhos

Acordo 
com os acordes finais
da trilha do filme
que perdi

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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Quando

Que dia é hoje?
Ouve-se isto
na rotina dos dias fúteis
mas não aos sábados.
Sábado não chega súbito. Há a véspera e sua espera.
É inconfundível. Sabe-se que é sábado.
Começa ainda na sexta. É um tempo espichado 
um dia com duas noites
Todo dia devia ser sábado
Domingo não
que é dia de descanso.

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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Primavera

Pela janela
um resto de dia se despede
acena cores
frescor

Espalha-se na abóboda
a base abóbora
logo rósea maquiagem
sobre o azul que persiste

Tons suaves
sol que esmaece
aos poucos
anoitece

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


Direitos Reservados © 2016 Cristiano Ottoni de Menezes

O sonho não acabou

Bom dia. Quer dizer... ainda não dormi tudo. Abri os olhos antes do sono acabar. Pelo silêncio, fora os micro-organismos, talvez seja o único ser, de certa forma, acordado. Entre nós, humanos, a esta hora, nem os padeiros. Nada de pássaros, latidos, ronco de motores. O canto do galo há muito já não se ouve. Mesmo aqui, próximo ao Corte. Vez em quando acordam-me helicópteros. Mas hoje, nem isto. O que há são pensamentos. Muitos. E passam desordenados. Vem, vão, voltam, acumulam-se como os carros mais tarde na Nossa Senhora de Copacabana. Tento me entregar ao torpor, retomar o sonho do ponto em que estava quando meio que acordei. Mas sumiu como fumaça. Nem me lembro. Melhor assim. Vai ver, foi o que me despertou. Fecho os olhos. Talvez volte a dormir e acorde com buzinas, telefone, helicópteros, pesadelo.

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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Nua

Agitam-se os mares
as marés
os amares

Cantam poetas
uivam os lobos
buscam-se os amantes
quando a lua brilha
como se nunca antes...

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)
Danae, Gustav Klim


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Noções unidas

Antes de sermos de cá, 
ou de lá
de não sei onde
de perto ou de longe
de um jeito
ou de outro
somos o que há 
vida que pulsa

Em cada lugar
tanto o que encontrar
falares
cantares
comeres
tanto o que vestir
insistir
descobrir
desvendar
para ver 
como somos
e somamos
os humanos

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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Mind the gap

No metrô, sentado à frente da amiga, mas virado para ela, ele falava e falava. Quando não, os olhos inquietos indicavam a busca do que dizer, de modo a manter vivo o contato. Nos poucos segundos de silêncio, ela, sempre em estado de conversa, o socorria com um comentário qualquer, o que já lhe bastava para retomar o fluxo verbal.
Em outros momentos o jovem conjugava uma rápida sapateada com um riff de batucada no encosto do assento de acrílico, como se fosse uma virada de bateria, um efeito de passagem para um novo assunto.
Até que ela desceu e logo alguém sentou-se onde estava. Ele manteve-se na mesma posição, quieto, pensativo, com a mão no queixo, como se percebesse o eco de sua voz, a inércia do ritmo intenso da conversa interrompida.
Desceu algumas estações depois.

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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Mergulho

O desafio da folha em branco ainda é maior do que a capacidade de preenche-la com o que vasculho em minhas entranhas. Os versos, palavras que encontro são ainda o que surge fácil, como algas, ou a óbvia fauna que se vê em qualquer mergulho raso.
É preciso ir mais. Há um vulcão encoberto, camuflado por camadas de sedimentos acumulados.
Penso em desistir, mas a vertigem já não deixa. E o fundo, à primeira vista compacto, e estável, vai se revelando poroso, receptivo às minhas investidas.
A água, então límpida, se faz turva, salpicada pela areia que minha agitação espalha. A sensação é de que cavo um abismo, de onde posso nunca mais sair, mas à medida em que nele penetro, torna-se mais e mais atraente, irresistível, inevitável.
E prossigo...

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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Jazz

Agora solo
deixo o conforto do tema
Assumo o risco
do improviso
Atento e solto
perco o juízo
Mas a cada nota
sei o caminho de volta

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


Cristiano Ottoni de Menezes

Direitos Reservados © 2016 Cristiano Ottoni de Menezes

Jardim

Os poemas
colho-os
no silêncio
em que nascem

Os poemas
quero sê-los
tê-los
na ponta da língua
dizê-los de um jeito
que sejam bem vindos
os poemas

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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Deságue

E então
o que são cem anos
agora que já me estendo
a ponto de vislumbrar a foz
o oceano

A vida
até aqui
tem sido este rio
e tudo o que foi tecido
desde cedo
na correnteza
em que escorrego
depois de tantas
curvas
quedas
sustos
surpresas
represas

Agora é o prazer
do suave deslizar
como que numa seda
e tudo o mais
se me conceda
até o encontro
mais cedo
mais tarde
com algas
e o sal nas águas
a emoção do feito
de deixar o leito
margens próximas
e viver então
o fim deste curso
a fusão com o imenso
que
percebo
já se oferece
acena como lenços
nas velas
de jangadas
entre ondas
que se entornam
renovam
a dança
do perene movimento

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)




Direitos Reservados © 2016 Cristiano Ottoni de Menezes

Primavera, Rio

Olho pela janela
um resto de dia
se despede
acena cores
frescor

Espalha-se
na abóboda
a base da abóbora
logo rósea
maquiagem
sobre o azul
que persiste

Tons suaves
sol que esmaece
aos poucos
anoitece

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)





Direitos Reservados © 2016 Cristiano Ottoni de Menezes

Lenha no fogão

Fervem-me
os neurônios
no diálogo
entre anjos
e demônios

Com versos 
faz-se
a conversa
nasce o poema
que então se serve
pois já não ferve.

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)



Direitos Reservados © 2016 Cristiano Ottoni de Menezes

De boa

Deixei passar a manhã
a tarde
passar o dia
passar o tempo
sem contar
minutos
horas
esperas
demoras

Andei ao léo
curti o acaso
dos desenhos no céu
perdi prazos
achei potes de mel

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2016)



Direitos Reservados © 2016 Cristiano Ottoni de Menezes

Coração de jardineiro

O jardim que plantei
não era isso
bem sei

Tinha cores
sombras generosas
tantas flores
canteiros
árvores frondosas

Não era grande
era maior
cada flor
o nome sei de cor

Antúrios
gardênias
hortênsias
cravos
cravinas
rosas
margaridas
monsenhores
e ainda jasmins

O jardim que plantei
não era meu
mas tinha muito de mim

Hoje, quando passo em frente
vejo mato
parasitas
ervas daninhas
e como se acenassem tristonhas
umas poucas marias sem vergonha

Ah, o jardim que plantei...

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2016)



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Cachoeira

Meus versos
fugidios
serelepes
meninos
escondidos
versos
feitos
desfeitos
em meio aos riscos
rabiscos
até que vertem
poemas
vestem-se com o jorro
vertiginoso
divertem-se
traquinas
perversos
sacanas
bacanas
moleques travessos
meus versos

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2016)



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Bicho solto

Não me cobre a linha reta
busco melhor traçado
não somos dois pontos
nosso encontro é ao acaso
não tenho hora
às vezes me atraso
perco tempo
acho curvas
atalhos
passo ao largo
do óbvio
caminho
que nunca me levará
a você

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2016)



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Tsumani Nino

Lanço garrafas ao mar
Em delírios
ouço gritos
vejo barcos
acenos
sereias
nas ondas
que lambem
esta ilha deserta

Que viesse de volta
algum sinal
ou mensagem nenhuma
mas não a tragédia em pessoa
não viesse o menino
o pequeno Aylan...

Ali não houve ciclone
maremoto ressaca
o que explicasse afogados
Ali o corpo de uma só criança
denuncia o tsunami moral
que devasta a humanidade.

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2016)


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Aliança

(Para Cláudia)

Você tem a senha
dos meus sonhos
do que me assanha

Você tem a manha
de regar as manhãs
cuidar do que nasce
como um dia nasceu
esse amor

Você e eu...

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2016)

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