Minhas calças vermelhas...

E então o transatlântico seguiu viagem, desta vez, pelo ar. Assustado olhava para o território que sobrevoávamos e balbuciava: 
“Mas... como ele voa? Não vamos cair? ”
“Não... é assim mesmo, fique tranquilo”, disse alguém.
O medo passou, mas não o estranhamento, a admiração.
Pousamos à noite na parte mais alta de um pequeno lugarejo. Embora cuidadosa, a descida causou grande alvoroço na população local. Mas, da mesma forma como se passou comigo, o inusitado foi logo absorvido. Um navio “ancorado” no alto do morro, onde pousou, logo não causava maiores espantos. Estava ali, e pronto. 
Já os passageiros, os tripulantes, ah, éramos vistos como extraterrestres, algo assim. Ao circular pelas ruelas do lugar percebia olhares de soslaio, comentários disfarçados nas calçadas, janelas ou portas de bares. 
Atravessei a cidadezinha e cheguei a uma praia sem areia. Havia muitos banhistas e todos aglomerados na estreita faixa de pedra onde as ondas batiam com relativa força. Fachos de luz percorriam o lugar, o que possibilitava apenas uma visão intermitente. Pessoas, pedra e ondas surgiam e desapareciam, como se piscassem continuamente. 
Troquei algumas palavras com um jovem bem queimado de sol e sunga preta. Ele me orientou a sentar na pedra e prestar atenção nas ondas gulosas que a lambiam. Os mergulhos tinham que ser rápidos e próximos à costa. Lembro de seu rosto, com olhos puxados, mas expressão ocidental. Tinha algo de rude, mas não deixou de me alertar quanto aos procedimentos adequados de modo a me proteger. E só. Sem muito papo. Tipo, cuide-se e tchau. 
Acordei com a forte impressão da viagem num navio voador. Esbocei um início de narrativa, mas Claudia tinha que sair para um compromisso. Não era o momento de se compartilhar sonhos. Absurdo e mudo, entendi. 
Levantei-me, cruzei a sala e na cozinha dei de cara com a pia cheia de louça do jantar. Comecei então a lavar. Foi a forma que encontrei para me manter em silêncio e prolongar as sensações oníricas. Enquanto enxaguava pratos, copos, talheres, procurava me lembrar das sequências, vislumbrar sentidos, buscar conexões.
Ela assumiu o fogão e logo, acomodados na pequena mesa da cozinha, comíamos a tapioca com café. Nessa brecha, demos uma passagem de olhos nos jornais, suas manchetes, reportagens e trechos de colunas. Não havia tempo para a leitura de artigos, mas a espiada nas últimas do jogo político foi o bastante para a inevitável dose de tensão. Há de tudo na disputa pelos poderes do Estado, essa abstração que rege nossas vidas.
Já à porta do elevador me deu um beijo junto com a recomendação que ficasse atento à chegada do técnico de ar condicionado. 
Voltei ao jornal, mas já não conseguia ler uma linha sequer. Fiquei pensando no bem comum, essa outra abstração.
Me deu vontade de tomar aquele velho navio... 

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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