No coração do Brasil

Andava desde que o dia clareou. Deveria ser algo em torno das dez horas. A mochila, de nylon, estrutura de alumínio, com poucas roupas e o meu I-Ching, não pesava tanto. E então, uma encruzilhada. Quilômetros atrás não faltavam opções, mas naquela confluência era uma ou outra direção. Olhei em volta e não percebia nada que motivasse qualquer escolha. Nenhuma montanha, casas ou paisagens interessantes. Só mato fechado. Se estivesse com alguém, faria ao menos um par ou ímpar, mas, sozinho, naquele fim de mundo, tive que escolher e assim fiz.
Fui pela esquerda. A terra era seca e meus passos levantavam poeira. A bota, originalmente verde, tinha, àquela altura, uma coloração entre o cinza e o marrom. Fisicamente estava bem, mas mentalmente cansado. Quatro meses de estrada, caronas de caminhão, longas caminhadas, noites no saco de dormir em quiosques de praças, varandas de casas, ou terrenos afastados. Já era hora de voltar para casa.
Continuava a andar. A paisagem era a mesma. Mato dos dois lados e a estrada de terra por onde avançava, só não sabia para onde. Já fim de tarde, a temperatura e a luz começavam a cair. Estava em plena Amazônia e quando escurecesse ficaria numa situação muito perigosa. Imaginava, no mínimo, onças à espreita, olhos brilhando na escuridão. Impossível voltar. Andara o dia inteiro. O lugar era absolutamente ermo. Ao longo do dia os únicos seres vivos que vi foram pássaros e algumas aves de maior porte. Começava a ficar tenso. Imaginava-me tendo que esticar o saco de dormir à beira da estrada, junto ao mato que a margeava. Continuava a caminhar, até que ainda ao longe, vi um caminhão parado. Já menos distante percebi um homem agachado que trocava um pneu. Senti a alegria dos náufragos. Segui nos meus passos. O sujeito continuava na função e agia como se não acontecesse nada além do que fazia. A uns vinte metros de distância acenei e, projetando a voz, disse: 
“Boa!”
Não tive resposta e o homem sequer me olhou. Senti perigo e parei. Com movimentos lentos, tirei a mochila das costas, pousei-a na terra e me agachei. Dali podia ouvir os ruídos que eram produzidos no manejo das ferramentas. Senti que era observado de soslaio. Depois de alguns minutos, tentei novamente um contato:
“Sou estudante, moro no Rio de Janeiro... Estou voltando pra casa... O senhor pode me dar uma carona?”
Nada de resposta. Apreensivo, não sabia como conquistar a confiança do motorista que com a chave de roda já dava os últimos apertos nos parafusos do pneu trocado. A noite chegaria logo. Aquele caminhão era a minha única chance de não ficar naquela estrada que cortava a selva. 
Sempre agachado no mesmo lugar acompanhei atentamente a maneira como guardou o macaco e a chave de roda na caixa de ferramentas. Foi então que, enquanto limpava as mãos com uma flanela, olhou-me enfim e pôs-se a examinar detalhadamente o estranho que surgira do nada, naquele lugar desabitado, onde ninguém passava a pé.
Então falei mais uma vez:
“Meu amigo... me dê uma carona por favor...  Sou um estudante em férias....  Viajei um bocado, conhecendo a região aqui, mas agora preciso voltar pra casa... ” 
Sem falar uma palavra, abriu a porta do caminhão, sentou-se ao volante. Fiquei onde estava. Com o coração na boca, ouvi a porta bater. Mais um pouco e o ronco do motor preenchia o espaço com uma série de curtas aceleradas. Senti o tranco quando engatou a marcha. Deu a ré e passou por mim. Com o movimento da cabeça, acompanhei-o como se estivesse filmando. Parou a uns cinco metros de onde eu estava. Com os olhos arregalados, a boca semiaberta, vi-o soberano em sua boleia. Deu mais algumas aceleradas, engatou a primeira e lentamente passou novamente por mim. 
Angustiado vi-o afastar-se, mas quando o motor já pedia a segunda marcha, recebi como música nos ouvidos o som do ar comprimido de duas ou três pisadas no freio. Num salto peguei a mochila e corri em direção à sua porta:
“Vai me levar amigo? ” 
Perguntei com os olhos transbordando alívio e alegria. E desta vez ouvi uma resposta:
“Levo sim, mas na boleia não. Só lá atrás”.
Rapidamente subi na carroceria. Vazia, era toda minha. A noite desceu. Estiquei o saco de dormir, apoiei a cabeça na mochila e me deitei sob o céu mais estrelado que já vi. 

- Cristiano Ottoni de Menezes (inédito/2015)


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